O veneno é o remédio

Até aqui tentamos estabelecer que a base de toda a nossa experiência é muito mais ampla e muito menos sólida do que pensamos – apesar de tentarmos fixar pessoas e situações (o casamento se desfaz, os filhos vão embora, mudamos de emprego, o carro dá problema, o cachorro que tanto amamos morre), tudo muda o tempo todo – e não temos nenhum controle sobre isso!
Começamos, então, a entrar nos ensinamentos sobre o despertar da compaixão, também chamado Bodhicitta relativa.

O mestre vai dizer que não precisamos dar tanta importância a nós mesmos, aos nossos inimigos ou nossos amores. A ênfase na suavidade é a instrução essencial para que possamos nos reconectar com o frescor da vida e, ao mesmo tempo, nos libertar do mundo estreito do ego.
Vamos voltar sempre a essa noção de frescor, de espaço aberto, e à ideia de não dar tanta importância a tudo.

Buddha identificou três venenos da mente que nos levam ao sofrimento: anseio ou desejo, aversão ou ódio e ignorância ou desinteresse.
Todo tipo de vício encaixa-se na categoria anseio (ou desejo), e isso significa querer, querer e querer – sentir que precisamos repetir a experiência, ou seja, sentir que precisamos ver novamente uma determinada pessoa, que precisamos beber mais álcool, que precisamos fazer mais sexo, que precisamos de mais dinheiro – enfim, que precisamos mais de alguma coisa.
A aversão compreende agressividade, raiva, ódio e todo tipo de sentimento negativo, bem como um verdadeiro leque de diferentes tipos de irritações, ou seja, o desejo de não mais ver uma determinada pessoa - o desejo de não repetir uma experiência desagradável.
E a ignorância? Atualmente, costuma-se chama-la de negação.

A instrução essencial de todos os ensinamentos budistas é: aconteça o que acontecer, não tente se livrar dos sentimentos indesejáveis. (confuso, não?) Esse é um pensamento pouco comum, porque não faz parte de nossa tendência habitual deixar que esses sentimentos indesejáveis fiquem por aqui. De um modo geral, estamos sempre tentando fazer com que eles desapareçam.

O que passa despercebido é que um mesmo objeto, situação ou pessoa sempre vai gerar uma sensação agradável em algumas pessoas, vai gerar uma sensação desagradável em outras pessoas e um grande número de pessoas nem vai se importar se esse objeto, pessoa ou situação está presente ou não.

De uma maneira ou de outra, os três venenos (desejo, aversão e desinteresse) estão sempre nos prendendo em uma armadilha, estão sempre nos aprisionando e fazendo com que o nosso mundo seja muito pequeno.

Quando o anseio ou desejo (apego) está presente, podemos estar sentados na frente do Grande Canyon, mas em vez de desfrutar a paisagem, tudo o que conseguimos ver é aquele pedaço de bolo de chocolate que desejamos tanto (ou aquela pessoa do nosso lado). Quando a aversão está presente, podemos estar sentados na frente do Grande Canyon, mas em vez de desfrutar a paisagem, só conseguimos ouvir as palavras de raiva que, há dez anos, dissemos a alguém. E quando a ignorância está presente, podemos estar sentados na frente do Grande Canyon sem mostrar nenhum interesse – tipo tanto faz estar aqui ou tomando um picolé na esquina de casa.

Cada um dos três venenos tem o poder de nos capturar tão completamente que nem percebemos o que está bem à nossa frente. E o pior é que isso acontece o tempo todo, a cada instante. Não conseguimos permanecer presentes no momento presente – e sofremos.

Não há nada realmente errado com o anseio, a agressividade ou o desinteresse, exceto que nós as levamos para um campo tão pessoal que desperdiçamos o sabor do instante.

A questão principal é que quando essa “grande conversação” - esse diálogo interno está presente -, despertando nossos sentimentos de desejo, raiva, ignorância, inveja, ciúme, arrogância ou (até mesmo uma sensação de) inutilidade, podemos ver isso como um sininho tocando em nossa mente ou uma lâmpada que se acende: Essa é a nossa oportunidade para amadurecer o nosso verdadeiro coração compassivo.

Quando a conversação interna começa, a insatisfação surge, então, decidimos extravasar ou reprimir o que estamos sentindo. Com a prática continuada de Shamatha (repousar a atenção na respiração) estamos desenvolvendo um ponto intermediário entre extravasar e reprimir os sentimentos. Estamos descobrindo como ficar parados e sentir completamente o que há por trás de toda essa história de querer ou não querer muito alguma coisa, pessoa ou situação.

Quando o desejo surgir, quando a raiva surgir ou quando o desinteresse estiver presente, em vez de extravasar ou reprimir, devemos usar “esse momento” como uma grande oportunidade para sentir nosso coração – sentir nossa ferida. Por trás de todo anseio, por trás de toda raiva, inveja ou sentimento de não ter nenhum valor, ou seja, por trás de toda desesperança, desespero ou depressão, há algo extremamente suave que chamamos de nosso autêntico coração compassivo (Bodhicitta).

Quando tomamos essa atitude, os três venenos deixam de ser venenos se tornam sementes para sermos nossos próprios amigos. Temos a oportunidade de trabalhar a paciência e a bondade; temos a oportunidade de não desistir de nós mesmos, nem extravasando nem reprimindo nossos sentimentos.
Na verdade, eles nos oferecem a possibilidade de mudar completamente nossos hábitos de reatividade. E isso nos beneficia e beneficia os outros também.
Esse ensinamento nos diz como transformar as circunstâncias indesejáveis, como transformar toda a confusão, em um caminho que nos leva à iluminação, nos reconectando com nosso coração suave, nos reconectando com nossa clareza e capacidade de maior abertura.


MEDITAÇÃO (ESCUTA, COMPREENSÃO e FAMILIARIDADE)

ESCUTA / ENSINAMENTO
Encoberto por toda desesperança, desespero e depressão, existe um suave coração compassivo.

COMPREENSÃO / REFLEXÃO
O mestre vai dizer que
Quando surgirem sentimentos de raiva, inveja, ciúme, intolerância e impaciência, pratique com muita suavidade, sem dar muita importância ao que acontece.
Comece a pegar o jeito de sentir o que atravessa toda a história que causou tais sentimentos.
Sinta o coração ferido que está por trás do vício, que está por trás de todo desejo, sinta o coração que está por trás da autodepreciação ou da raiva.
Quando alguém chega e crava uma flecha no seu coração é inútil ficar parado gritando com essa pessoa. É muito mais proveitoso voltar a atenção para o fato de que há uma flecha no seu coração e se relacionar com a ferida.

FAMILIARIDADE / MEDITAÇÃO
Nos próximos minutos...
Pratique Shamatha – repouse uma suave atenção na respiração...
E quando surgirem pensamentos, não dê muita atenção aos sentimentos despertados. Volte suavemente a se conectar com seu coração compassivo – e deixe ir, solte tudo.
E lentamente repouse sua atenção novamente em sua respiração.

Assim que essa sensação surgir, procure retê-la em sua mente, dentro de seu coração, sem se distrair, por três (3) a vinte e quatro (24) minutos.

Ao terminar...
Tentamos levar esse “sentimento; sensação” conosco durante o intervalo entre as meditações.

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